terça-feira, 29 de agosto de 2023

O Reboliço é um nefelibata (98)

(António Olaio, "My home is a logo #10"
1998 Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
Coisa linda feita de cão e nuvens.)



terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Moinhos na poesia (90)

SEMPRE AO SUL

 

E por sete palmeiras rente ao mar

a porção de mim que é do azul da noite. 

Mais o sol, o girar tão obsessivo

de varas que desenham uma cruz, 

 

com velas assoladas pelo vento

moendo na garganta o grão do verso.

De saga tão antiga quanto o mundo

– no secreto moinho do meu corpo:

 

por velas enredadas pelo vento

em varas redentoras de oura cruz.

Sob o céu, o rodar tão prisioneiro

das horas empurradas pelas horas,

 

a moer devagar um grão da terra

no cerrado deserto da planura.

Ao largo da palmeira frente ao mar:

o veleiro – fantasma – sob a lua.


José António Almeida, Mar Vermelho na Vila Toda Branca, não (edições), 2022, p. 36. 


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Moinhos na Poesia (89)

"Os rios não decidem as suas pontes
Nem os moinhos decidem o vento
Os ramos não decidem os seus ninhos."


Daniel Faria, O Livro do Joaquim (1ª ed, Quasi, 2007; 2ª ed, Assírio & Alvim, 2019).
(Com um agradecimento à Professora Maria Teresa Furtado.)

sábado, 2 de novembro de 2019

(Antes que se escoe o resto do ano, que começou com estrondo.)

A RAIVA

Sigo até ao portão do jardim, uma pequena
passagem de pedra, escavada no piso
térreo, para o suburbano
horto, que ali está desde os dias de Mameli,
com os seus pinheiros, as suas rosas, as suas raízes.
Em volta, para lá deste paraíso de campesina
tranquilidade, comparecem
as fachadas amarelas dos arranha-céus
fascistas, dos últimos estaleiros
e em baixo, através de grossos painéis de vidro,
há um armazém, sepulcral. Dormita
ao belo sol, um nada fresco, o grande horto
com a casinha, no meio, oitocentista,
cândida, onde Mameli morreu,
e um melro a cantar trama a sua intriga.

Este meu pobre jardim, todo
de pedra... Mas eu comprei um aloendro
– novo orgulho da minha mãe –
e vasos de todos os tipos de flores,
e até um fradezinho de madeira, um querubim
obediente e róseo, um nada malandro,
que encontrei na Porta Portese, quando andava
à procura de móveis para a casa nova. Cores,
poucas, a estação é assim áspera: fios
ligeiros de luz, e verdes, todos os verdes...
Só um pouco de vermelho, turvo e esplêndido,
semi-escondido, amargo, sem alegria:
uma rosa. Pende humilde
do ramo adolescente, como de uma fenda,
avanço tímido de um paraíso em estilhaços...

Mais de perto, é ainda mais dispersa, parece
uma pobre coisa indefesa e nua,
uma pura atitude
da natureza, que se encontra no ar, no sol,
viva, mas de uma vida que a ilude
e a humilha, que quase a faz envergonhar-se
de ser assim rude
na sua ternura extrema de flor.
Aproximo-me ainda mais, sinto-lhe o odor...
Ah, gritar é pouco, e é pouco calar:
nada pode expressar uma existência inteira!
Renuncio a todos os actos... Apenas sei
que nesta rosa fico a respirar,
num só mísero instante,
o odor da minha vida: o odor da minha mãe...

Porque não reajo, porque não tremo
de alegria, ou gozo qualquer pura angústia?
Porque não sei reconhecer
este antigo nó da minha existência?
Sei porquê: porque em mim está já encerrado o demónio
da raiva. Um pequeno, surdo, fosco
sentimento que me intoxica:
esgotamento, dizem, febril impaciência
dos nervos: mas a consciência já não está livre disso.
A dor que de mim mesmo, a pouco e pouco, me aliena,
se não mais que a ela me abandono,
desprende-se de mim, volteia por si mesma,
pulsa-me desordenada sobre as têmporas,
enche-me de pus o coração,
já não comando o meu tempo...

Dantes, nada me conseguiria vencer.
Estava encerrado na minha vida como no ventre
materno, neste ardente
odor de humilde rosa húmida.
Mas lutava para sair de lá, na província
campestre, poeta de vinte anos, sempre, sempre
a sofrer, desesperadamente,
desesperadamente a gozar... A luta terminou
com a vitória. A minha existência privada
já não se encerra atrás das pétalas de uma rosa,
– uma casa, uma mãe, uma paixão afanosa.
É pública. Mas até o mundo que eu desconhecia
se abeirou de mim, me é familiar,
se deu a conhecer e, a pouco e pouco,
impôs-se, necessário, brutal.

Não posso agora fingir não o saber:
ou não saber como isso me quer.
Que espécie de amor
conta nesta relação, que acordos infames.
Não arde uma chama neste inferno
de aridez, e este árido furor
que impede o meu coração
de reagir a um perfume é uma ruína
da paixão... Aos quase quarenta anos,
encontro-me na raiva, como um jovem
que de si nada mais sabe além de que é novo,
e se enfurece contra o velho mundo.
E como um jovem, sem piedade
nem pudor, não oculto
esta minha condição: não terei paz, jamais. 

(Pier Paolo Pasolini, "La rabbia"; Tradução: Ana Isabel Soares)

domingo, 3 de março de 2019

[The Big Bang Theory]

começou a noite por ser o calabouço dos desassossegados,
segundo pacto. foi o abismo que explodiu
nas primícias, guerras depois do oxigénio inquietar o barro,
silêncio de boca aberta.
e veio a ser que as estátuas fizeram as bocas
assombrar-se de água
e cuspiram para cima, para a claridade dos pulmões intermitentes,
olhos mais prováveis da cúpula.

mas a água retornou — afogaram-se
com dízimos desabados do regresso.
aconteceram as primeiras flores, subiram pela aridez, devoraram
e deus viu que não era bom: o esquecimento era potável.
mas nem a flecha mais apertada pela luz
acertou na serpente nem nos ovos que abandonou.
para cobrir com muito de escuro abrem
os caminhos maternos, a sua bússola de areias
frias caoticamente.

e ainda hoje algumas canetas direitas
por esses desertos transitam, mordem escorpiões
e o veneno por dentro os morde, morde-lhes a sede:
do seu centro explodem os antídotos.
(também outras esquerdas: certo é que algumas mãos
estão cheias da sua maneira de noite).
no didicil núcleo de uma estrela na língua morrem,
desaparecem apagados e limpos,
amargos, estremecendo,
morrem
como quem despe uma roupa viperina
roubada aos outros homens, lanterna.

e deus viu que não era bom — todo o frio
desinstala a ciência — e
foi a tarde e foi a manhã, oitavo dia:
/noite longa, maravilhosamente longa/,
começou a noite por ser o calabouço dos desassossegados.
do restante homem,
tão informes e cozidas tantas carnes num traço a recto vazio,
por fome rouba o poema


(Leonardo, âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio], Companhia das Ilhas, 2015, pp. 26-27.)

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Requiem por Pelota

O Reboliço sabe: é da natureza dos bichos gatinos e caninos viverem, em regra, menos tempo que os bichos humanos. O mundo todo sabe isso. Mas não entra no coração dos humanos ver viajar os outros seres para as dimensões insensíveis. A Misha já viu seguirem duas boas amigas: quando se foi a Sasha, conseguiu alinhavar o texto que a Em Cena publicou, com desenho de Bruno Silva (consegue ler-se nas três imagens, em baixo). Agora, que abalou a Pelota, foi o Isaïes quem falou.

NO ERA SÓLO UN GATO, ERA PELOTA
Cuando nos deja algún animal con el que hemos compartido parte de nuestra vida, a veces escuchamos a gente que, quizá con buena intención, suelta comentarios tipo "pero si sólo era un gato", "mejor eso que si se hubiera muerto un familiar", o "menos problemas". Bueno, este tipo de frases son de una crueldad extrema. Pelota no era "sólo un gato". Tenía un nombre propio y una manera de ser. Era una entidad completa, única y maravillosa con la que he tenido la suerte de convivir durante más de catorce años y que ha dejado una huella indeleble en mi vida, alguien que estuvo a mi lado de manera incondicional cuando pasé por una depresión; que subía al sofá, a la cama, allá donde estuviera para darme cariño, para ronronear a mi lado y decirme que ella estaba allí, que todo estaba bien; un ser que venía a buscarme cuando yo escribía en el despacho y me tocaba el brazo con una patita para que le acariciara la cabeza (y juro que, al hacerlo, su mueca parecía la de una sonrisa). Alguien con quien compartí yogures (le volvían loca), quilómetros de viajes al Empordà o al Delta del Ebro cuando era más pequeñita, libros, películas, cada uno disfrutando a su manera (ella, por ejemplo, ronroneaba muy fuerte cuando le leía libros o poemas en voz alta). Alguien que dependió de mí cuando llegó a casa, un cachorrito de pocos meses, y que dependió de mí estas últimas semanas, cuando tuve que alimentarla manualmente, seis veces al día, a la espera de que volviera a comer por su cuenta. Por quien tuve que cancelar viajes y alterar planes, y lo volvería a hacer una y mil veces porque cuando Pelota venía donde yo estaba, me miraba de esa manera tan suya, con los ojos entrecerrados, y se ponía a ronronear, me estaba regalando algo bellísimo e incondicional: la confianza, el cariño más absoluto. Y nunca, nunca dejó de hacerlo. ¡Cuánta gratitud y cuánta constancia había en el amor de mi gata! Por supuesto que se me ha muerto un familiar, no me da vergüenza admitirlo, aunque este familiar sea felino, y no pienso mitigar mi dolor porque Pelota no fuera humana. Me va a costar tiempo y muchas lágrimas acostumbrarme a no volverla a ver nunca más. A incorporarla como parte viva de mí y de mi historia sin que duela. Mi querido Jaime escribió, en unas páginas inolvidables sobre la muerte de su compañero felino Mr. O'Donnell: "los gatos son, quizás, entidades demasiado metafísicas como para necesitar creer en la idea de un más allá"*. Pelota era en sí misma un principio y un fin, era la vida entera y fue también su punto final. Se durmió con la cabecita apoyada en la palma de mi mano, sin sufrir. Diciéndome, como siempre, que todo estaba bien. Diciéndome gracias, diciéndome hasta siempre. Y sin ella mi vida ya no volverá a ser la misma. La foto es una de las últimas que tomé de Misha y Pelota juntas. Pelo, que se sabía cuidada y protegida, es la que sonríe. Y Misha mira como me está observando justo ahora que escribo esto: como diciéndome "no te preocupes, yo todavía estoy aquí, yo sigo contigo, como siempre".
*Jaime Manrique, Latin Moon in Manhattan




sábado, 18 de agosto de 2018

O Reboliço olha para os astros

En la tranquila noche, mis nostalgias amargas sufría. 
En busca de quietud bajé al fresco y callado jardín.
En el obscuro cielo Venus bella temblando lucía,
como incrustado en ébano un dorado y divino jazmín. 
A mi alma enamorada, una reina oriental parecía,
que esperaba a su amante bajo el techo de su camarín,
o que, llevada en hombros, la profunda extensión recorría,
triunfante y luminosa, recostada sobre un palanquín. 
«¡Oh, reina rubia! -le dije-, mi alma quiere dejar su crisálida
y volar hacia ti, y tus labios de fuego besar;
y flotar en el nimbo que derrama en tu frente luz pálida, 
y en siderales éxtasis no dejarte un momento de amar».
El aire de la noche refrescaba la atmósfera cálida.
Venus, desde el abismo, me miraba con triste mirar.

Rubén Darío (1867-1916)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Oh...

No one knows where I'm going,
not even me. Although that owl
I heard outside last night might
lead me to the terrain and call out
the custodians so they can
surround and welcome me, or
do whatever they want to do. I won't
speak, won't say my name even if
they try to coerce me, or play
unearthly music, such as sailors
hear far out on the Atlantic, in fog
so thick they venture to climb it
to reach clear sky. Some do and speak
of large blue birds that glide there
silently as ghosts, but those men
return too damaged to speak much
or stay above ground very long.
The owl could tell more, if he wanted,
but he won't. And not only that,
he's decided he will never be seen.

Matthew Sweeney (6-10-1952/5-8-2018), "The Owl"
(incompleto - a publicar, inteiro, no próximo número da Poetry Magazine)

(Cortar o pão)

Le loro passioni, era evidente, non risalivano nella storia, non uscivano dal paese stretto dalle argille malariche, crescevano nel piccolo recinto fra quattro case, avevano l’urgenza e la miseria del bisogno quotidiano del cibo e del denaro, si rivestivano, senza nascondersi, del formalismo dei galantuomini, gonfiavano nello spazio costretto delle anime piccole e del paesaggio desolato, fino a premere violente, come il vapore del brodo lungo della vedova sotto il coperchio della pentola di terra, che sentivo brontolare e soffiare su un povero fuoco di stecchi, là nel camino. Guardavo il fuoco, pensando alla serie infinita dei giorni che mi si stendevano innanzi, e nei quali, anche per me, l’orizzonte del mondo degli uomini sarebbe stato il cerchio di queste oscure passioni; e la vedova intanto disponeva sul tavolo il pane e la brocca dell’acqua. Era il pane nero di qui, fatto di grano duro, in grandi forme di tre o di cinque chili, che durano una settimana, cibo quasi unico del povero e del ricco; rotonde come un sole, o come una messicana pietra del tempo. Cominciai ad affettarlo, con il gesto che avevo ormai appreso, stringendolo e appoggiandolo al petto, e traendo verso di me, attento a non tagliarmi il mento, il coltello affilato.
As paixões daquela gente, era evidente, não passavam para a história, não saíam da terra estreita de argilas de ar ruim, cresciam no recinto encolhido entre quatro casas, tinham a urgência e a miséria da diária precisão de comida e de dinheiro, revestiam-se, sem o esconderem, do formalismo da pequena nobreza, inchavam no espaço restrito das almas pequenas e da paisagem desolada, até um pressionar violento, como o vapor do caldo que a viúva fervia sob a tampa da panela de barro, que eu ouvia rugir e assobiar, em cima de um pobre lume de tanganhos, lá no caminho. Olhava para o fogo, pensando na série interminável de dias que se estendia à minha frente e em que, também para mim, o horizonte do mundo dos homens seria o círculo daquelas paixões obscuras; enquanto isso, a viúva punha na mesa o pão e o jarro de água. Era o pão preto daqui, feito de trigo duro, em formas grandes, de três ou de cinco quilos, que duram uma semana, praticamente o único alimento de pobres e de ricos; redondo como um sol ou como uma pedra do tempo mexicana. Comecei a cortá-lo, com o gesto que aprendera, apertando-o e segurando-o com o peito, e aproximando de mim, com cuidado para não cortar o queixo, a faca afiada.
(Carlo Levi, Cristo si è fermato a Eboli, Letteratura Italiana Einaudi, 1945, p. 26.
Tradução: AIS.)

sábado, 21 de julho de 2018

O Reboliço foi parar ao jornal

Além de notícias que vão de Alcoutim a Aljezur, o Algarve Informativo agora traz o Reboliço, muito grato ao Daniel Pina.
(Este número, entre outras coisas, inclui uma bela reportagem sobre a exposição que a Associação 289 e Pedro Cabrita Reis mostram no Solar das Pontes de Marchil. Ide lá ver.)

domingo, 15 de julho de 2018

- E então, pai, o ramo de louro foi eficaz?
- Oh-oh! Pusemo-lo dentro de casa, como disseste. Agora anda aqui uma mosca de roda dele, mas é capaz de ter nascido cá dentro, sabes, e de esta ser a casa dela. Ou isso, ou é parva.

("Pass on")


(Imagem publicada no Twitter @Wordsworthians [ou, The Romanticism Blog], do monumento a Boatswain, cão de Lord Byron. O Reboliço lê as palavras de John Hobhouse, amigo de Byron, a encimar os versos do poeta inglês: "Perto deste lugar jazem os Restos daquele que possuiu Beleza sem Vaidade, Força sem Insolência, Coragem sem Ferocidade, e todas as virtudes Humanas sem os Humanos Vícios. Este louvor, lisonja inexpressiva se fosse dedicado a humanas Cinzas, é só um tributo de justiça à Memória de BOATSWAIN, um CÃO que nasceu em Newfoundland em Maio de 1803 e morreu em Newstead a 18 de Novembro de 1808."
O pobre bicho morreu de raiva; o dono cuidou dele até ao finamento, sem qualquer receio de contágio. A lápide legenda o túmulo que, ao que consta, é maior do que a sepultura do próprio Byron.)

When some proud Son of Man returns to Earth,
Unknown to Glory, but upheld by Birth,
The sculptor’s art exhausts the pomp of woe,
And storied urns record who rests below.
When all is done, upon the Tomb is seen,
Not what he was, but what he should have been.
But the poor Dog, in life the firmest friend,
The first to welcome, foremost to defend,
Whose honest heart is still his Master’s own,
Who labours, fights, lives, breathes for him alone,
Unhonoured falls, unnoticed all his worth,
Denied in heaven the Soul he held on earth –
While man, vain insect! hopes to be forgiven,
And claims himself a sole exclusive heaven.
Oh man! thou feeble tenant of an hour,
Debased by slavery, or corrupt by power –
Who knows thee well, must quit thee with disgust,
Degraded mass of animated dust!
Thy love is lust, thy friendship all a cheat,
Thy tongue hypocrisy, thy heart deceit!
By nature vile, ennobled but by name,
Each kindred brute might bid thee blush for shame.
Ye, who behold perchance this simple urn,
Pass on – it honours none you wish to mourn.
To mark a friend’s remains these stones arise;
I never knew but one -- and here he lies.

terça-feira, 5 de junho de 2018

O Reboliço é um nefelibata (96)

- De que mais gostas, homem enigmático, diz? teu pai, tua mãe, tua irmã, ou teu irmão?
- Não tenho nem pai nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Teus amigos?
- Usais uma palavra cujo sentido até hoje ignoro.
- Tua pátria?
- Desconheço a sua latitude.
- A beleza?
- Muito me agradaria gostar dela, deusa e imortal.
- O ouro?
- Detesto-o como detestais Deus.
- Eh! de que gostas, então, extraordinário estrangeiro?
- Gosto das nuvens... das nuvens que passam... além... além... as maravilhosas nuvens!
*
- Qui aimes-tu le mieux, homme enigmatique, dis? ton père, ta mère, ta soeur ou ton frère?
- Je n'ai ni père, ni mère, ni soeur, ni frère.
- Tes amis?
-Vous vous servez là d'une parole dont le sens m'est resté jusqu'à ce jour inconnu.
- Ta patrie?
- J'ignore sous quelle latitude elle est située.
- La beauté?
- Je l'aimerais volontiers, déesse et immortelle.
- L'or?
- Je le hais comme vous haïssez Dieu.
- Eh! qu'aimes-tu donc, extraordinaire étranger?
- J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages!

Charles Baudelaire, Petits poèmes en prose, I (1869)

quinta-feira, 31 de maio de 2018

"Como uma cidade que não desistisse de mim"

À Fernanda Dias

Vejo-me de mãos nos bolsos. As ruas impressas no
Manhattan Street Walker distinguem-se da calçada
debaixo dos meus pés
porque são coloridas. As pedras, os tijolos das
paredes em Washington Mews, vidro que as
portas refletem, o céu, chão enquanto ando, tudo
neve e fumo, cinza branco. Nevou.

Lembro-me: nunca visitei a estátua da Liberdade, vejo-a
de longe, no jardim de Battery. Os esquilos
são pequenas esculturas em metal. Escrevi o meu nome na
neve, um monte que cobria uma pedra.

Estendo roupa numa varanda larga, um pátio de onde vejo a
ponte de Brooklyn; a única varanda que tem
roupa estendida, em todo o Financial District.
Quando o vento consegue soprar entre os edifícios, é
uma cena campestre. Ordet junto ao Pier 17.

(AIS, Cão Celeste, 12, março de 2018, p. 25)

Elevação

O Reboliço não acredita em coincidências. Por isso, não se surpreendeu quando ontem, depois de uma palestra em que se falou de moendas nos textos e nos tempos da Antiguidade (não eram "moinhos" como ainda os há hoje, ou talvez seja a sua ideia de "moinho" sempre ligada ao Moinho Grande, a edifícios de três gigantes andares que o impede de ajustar a palavra a coisas pequenas como duas pedras movidas com a força da mão de uma pessoa), a Maria Manuel lhe entregou, para oferecer a uns meninos, a reprodução de um desenho de Simon Goodrich que é tal e qual mas tal e qual o desenho do Moinho de Castro Verde, que o avô Xico ainda ajudou a reconstruir. Assim:


quarta-feira, 23 de maio de 2018

My Philosophy of Life

Just when I thought there wasn’t room enough
for another thought in my head, I had this great idea—
call it a philosophy of life, if you will. Briefly,
it involved living the way philosophers live,
according to a set of principles. OK, but which ones?
That was the hardest part, I admit, but I had a
kind of dark foreknowledge of what it would be like.
Everything, from eating watermelon or going to the bathroom
or just standing on a subway platform, lost in thought
for a few minutes, or worrying about rain forests,
would be affected, or more precisely, inflected
by my new attitude. I wouldn’t be preachy,
or worry about children and old people, except
in the general way prescribed by our clockwork universe.
Instead I’d sort of let things be what they are
while injecting them with the serum of the new moral climate
I thought I’d stumbled into, as a stranger
accidentally presses against a panel and a bookcase slides back,
revealing a winding staircase with greenish light
somewhere down below, and he automatically steps inside
and the bookcase slides shut, as is customary on such occasions.
At once a fragrance overwhelms him—not saffron, not lavender,
but something in between. He thinks of cushions, like the one
his uncle’s Boston bull terrier used to lie on watching him
quizzically, pointed ear-tips folded over. And then the great rush
is on. Not a single idea emerges from it. It’s enough
to disgust you with thought. But then you remember something
     William James
wrote in some book of his you never read—it was fine, it had the
     fineness,
the powder of life dusted over it, by chance, of course, yet
     still looking
for evidence of fingerprints. Someone had handled it
even before he formulated it, though the thought was his and
     his alone.
It’s fine, in summer, to visit the seashore.
There are lots of little trips to be made.
A grove of fledgling aspens welcomes the traveler. Nearby
are the public toilets where weary pilgrims have carved
their names and addresses, and perhaps messages as well,
messages to the world, as they sat
and thought about what they’d do after using the toilet
and washing their hands at the sink, prior to stepping out
into the open again. Had they been coaxed in by principles,
and were their words philosophy, of however crude a sort?
I confess I can move no farther along this train of thought—
something’s blocking it. Something I’m
not big enough to see over. Or maybe I’m frankly scared.
What was the matter with how I acted before?
But maybe I can come up with a compromise—I’ll let
things be what they are, sort of. In the autumn I’ll put up jellies
and preserves, against the winter cold and futility,
and that will be a human thing, and intelligent as well.
I won’t be embarrassed by my friends’ dumb remarks,
or even my own, though admittedly that’s the hardest part,
as when you are in a crowded theater and something you say
riles the spectator in front of you, who doesn’t even like the idea
of two people near him talking together. Well he’s
got to be flushed out so the hunters can have a crack at him—
this thing works both ways, you know. You can’t always
be worrying about others and keeping track of yourself
at the same time. That would be abusive, and about as much fun
as attending the wedding of two people you don’t know.
Still, there’s a lot of fun to be had in the gaps between ideas.
That’s what they’re made for! Now I want you to go out there
and enjoy yourself, and yes, enjoy your philosophy of life, too.
They don’t come along every day. Look out! There’s a big one...

John Ashbery (1927-2017), 2009.
(Olá, Philip Roth; Olá, Júlio Pomar.)

terça-feira, 15 de maio de 2018

Garrett está online

O Reboliço pensa que Alexandre Herculano fez muito bem a si mesmo quando se retirou para Azóia de Baixo para produzir azeite. É um modo de perpetuar a vida como outro qualquer, e digno de um grande intelectual. Já Almeida Garrett reaparece numa existência que, sem deixar de ter o seu quê de bucólico, lhe propicia, inolente, a posteridade global.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

A Primavera tem lindas flores

O Reboliço senta-se à janela da varanda, o vidro aberto. Mexe-se a cortina com a brisa que a Ria traz, de levezinho. As moscas entram na sala, vagueiam, voltam a sair. O Reboliço admira o vermelhar dos frutos na tomateira velha, o espigar dos coentros altos, as folhas largas da orquídea, que há-de dar uma flor branca, grande, as seis flores da amarílis, agora envelhecidas, as divertidas cores do piri-piri, o orégão, impaciente, e os dois vasos de suculentas, que esperam ser transplantadas. Cheira-lhe a calor, cheira-lhe a luz.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

MUSA, SINCERAMENTE

Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e demais fomentadores
de pestilência moral? Que valor pode ter
uma metáfora sem preço, por brilhante
que seja, neste mundo de sementes apagadas
em lameiros de cimento? Tu não vês
o telejornal, Musa? Nunca ouviste falar
da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais,
julgas-te capaz de competir com traficantes
de desejos, decibéis e abraços? És capaz
de fazer rir um desempregado, de excitar
um espírito impotente? Consegues marcar
golos geniais como o Ricardo Quaresma,
proteger do frio as andorinhas, ir buscar
as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo para te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.
(José Miguel Silva, Últimos Poemas, Averno, 2017, p. 21.
Muito bem lembrado pela Inês e lembrando ao Reboliço versos da Rita Ann Higgins.)

Neptuno, Oceano, os tesouros.

(Foto do Neptuno com cabelo e patas de caranguejo, no mosaico do século IV da villa romana de Hemsworth, que pode ser visitado no museu de Dorset Museum: Bronwen Riley‏, a quem o Reboliço agradece a autorização para reproduzir aqui a imagem deste primo do Oceano farense, que acaba de ser considerado, com justiça, com justiça, tesouro português. Coisa que o Reboliço já sabia que era, nem teve nunca a mais pequenina sombra de dúvida.)

terça-feira, 1 de maio de 2018

Começa Maio

(Foto do raio de sol, do jarro e das folhas, escondidos atrás da ruína de tijolos das abandonadas fábricas do Vale de Santarém: Reboliço, caminhando de cestinho cheio de flores de sabugueiro e coração quente.)

Mill Marginalia

O Reboliço gosta tanto de coisas bem feitas. E, porque admira cada frase de John Stuart Mill, fica radiante quando descobre o trabalho bem feito pela Universidade de Michigan com a biblioteca do senhor.

domingo, 29 de abril de 2018

Ruínas de Milreu


   É muito fácil, em Milreu, pisar involuntariamente uma formiga agigantada, embora pequena se comparada com o que resta do templo ou com as douradas transcritas para mosaicos cuja cor se foi esbatendo. Também é fácil tocar ou pisar pedrinhas soltas ou conchas dispostas em espiral no que seria o centro exacto do templo. Mais difícil é perceber o que herdámos realmente de tantos séculos, o que aprendemos ou desaprendemos com aquilo a que chamamos história. Deus, caso andasse por ali, habitaria as laranjeiras, separado de nós por umas grades.
(Manuel de Freitas, Sob o Olhar de Neptuno, edições 50Kg, Porto,  2018, p. 5.)

Sob o Olhar de Neptuno

(Foto da capa de Sob o Olhar de Neptuno, de Manuel de Freitas, edições 50Kg, Porto, Abril de 2018:
Reboliço, a pensar como é bom receber prendas dos amigos aniversariantes.)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

"Os menó vai à praia"

O Reboliço ouve "a língua portuguesa como se fosse estrangeira", que é o que diz o Ivan Nunes sobre o conto de Geovani Martins. Lembra-o a voz de Bezerra da Silva falando do "pessoal do morro".

(O conto pode ser lido aqui.)

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Moinhos na poesia (88)

(Puis, buvant un coup qui restait au fond de la bouteille, et s’adressant à son voisin : )
Monsieur, par charité, une petite prise. Vous avez là une belle boîte. Vous n’êtes pas musicien ?
— Non. — Tant mieux pour vous, car ce sont de pauvres diables… bien à plaindre. Le sort a voulu que je le fusse, moi, tandis qu’il y a à Montmartre peut-être, dans un moulin, un meunier, un valet de meunier qui n’entendra jamais que le bruit du cliquet, et qui aurait trouvé les plus beaux chants… Au moulin, au moulin ! c’est là ta place.
(Denis Diderot, Le Neveu de Rameau, 1891.
François Couperin, "Les Petits Moulins à Vent", 1722.  

quarta-feira, 11 de abril de 2018

"Cidade triste e alegre"

(Foto do interior da capa de Lisboa, Cidade Triste e Alegre, de Costa Martins e Victor Palla, na reedição comemorativa de meio século do lançamento: Reboliço, à espera do tiro de partida. Em 2005, coordenado pela Lúcia Marques, fez-se um curso sobre Literatura, Cinema e Fotografia. Foi na Fundação Calouste Gulbenkian e a altura em que o Reboliço conheceu, raro, raro, um livro desmesurado de título Lisboa, Cidade Triste e Alegre. Mais alegre ainda ficou quando, quatro anos depois, as edições Pierre von Kleist se abalançaram para reeditar as imagens, a capa, o papel. Acrescentaram um livreto com a história da edição [numa pequena página] e um ensaio introdutório, escrito por Gerry Badger. Agora, esta sexta [que é 13, de boa fortuna], inaugura no Palácio Pimenta, lugar onde está o Museu da Cidade, essa Lisboa, uma exposição sobre o livro - álbum, aventura. O Reboliço mete-se ao caminho.)

domingo, 4 de março de 2018

O Reboliço colecciona calendários (37)

(Foto do calendário, tal como foi designada a colagem, ponteiros e tudo, os dias que passam com chávenas de café e a publicidade passada, pelo pequeno Nicolau,
que a assinou: pai, em orgulho perfeito pela obra do neto de quatro anos. O Reboliço não o está menos, não o está menos.)

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Ano do Cão

Una puerta se abre y en una latitud
diferente otra viene a cerrarse.
Porque no hay ordenado universo
en que sea posible negar tal ley
y quede alguna acción desatendida.
Porque no corre ningún hombre
sin que los árboles se curven.
Y lo que perdí vendrá a saludarme.
Es una cuestión de paciencia y matemática.

Esperanza López Parada, Los tres días, Pre-Textos, Valencia, 1994.
(O Reboliço late, grato, à amiga Fernanda Dias.)

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A filha-gata

(Foto da Perdida com a filha-gata no quintal: Prima Luísa, à pressa, à pressa, depois de o Tio Chico, seu pai, a ter chamado, "Anda cá ver isto, a gatinha mamando na Perdida." O Tio explica hoje: "Já não a apanhou a mamar, mas foi um instante de nada, entre a gatinha largar a mama e a Luísa fazer o retrato: não vês a posição dos bichos?" A Perdida era, como já se disse aqui, um bicho muito particular. Um dia, uma gata teve por ali crias e ela perfilhou-lhe uma: teve leite e tudo. Em chegando por lá o Isidro, que era visita regular e dado à brincadeira, metia-se com ela: "Eu levo-ta, Perdida. Fico-te com a gatinha." Parecia que o entendia, aquela mãe. Ficava possuída, ladrava-lhe com uma fúria que ninguém lhe conhecia e mordia-lhe os canos das botas altas, rosnando, enquanto ele avançava e ria, está claro. [Depois da morte da Perdida, foi o Isidro quem lhe recolheu a filhota.])

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

"A colina de Montmartre com pedreira" - e moinho

(Reprodução do desenho de Vincent Van Gogh, feito em 1886 e descoberto há coisa de nada:
El País, edição do Brasil. O Reboliço pensa sobre o que significa descobrir e 
lembra-se de revelar desvelar, descortinar, destapar. Verbos de mostrar.)

sábado, 13 de janeiro de 2018

(Ver é como ler.)


(Foto da capa do nº 22 da Telhados de Vidro,
sobre imagem de Rui Chafes, e onde se publicam,
entre obras maiores, esses pobres versos que aí vão:
Reboliço, babado.)

A UNS ÓCULOS

Uso um par de lentes novas.
Vejo tudo: o esqueleto de uma cama, ao alto, na marquise de um 5º andar
(não existe a arbitrariedade dos signos linguísticos);
cada agulha no ramo daquele pinheiro;

a gata que, aos meus passos, se escondeu no arbusto,
fugida, fugida,
estacou quando se pensou a uma distância segura e girou a cabeça na minha direção
(vejo tudo: dispensa lentes de vidro, armação de massa, concentra o foco do olhar com a imobilidade do corpo inteiro).

Vejo a luz dos dias crescidos e convenço-me que é das lentes.

*

Dentro do comboio em marcha, uma bailarina atravessa a carruagem, apoiando-se no espaldar de cada cadeira.
Sentada num dos extremos, o olhar alcança o outro e
vejo-lhe
o cambalear impotente, a quase queda de marioneta enquanto as novíssimas
flores de esteva
passam entre o verde texturado das cortinas
(fabricadas, diz a etiqueta, no Vale de Santarém).

Sei, portanto, a razão por que escolheu ser bailarina.

*

Nos dias crescidos, a manhã mostra sobre a ria línguas de terra.
São ilhas pequenas, escurecidas da vegetação anfíbia que as cobre.
Entre a maré baixa que ajuda a manhã e os meus olhos, ajudados pelo novo par de lentes, estão as árvores do jardim público. Mudam de tom: escuro ou claro, conforme lhes dá a sombra de nuvens ou de prédios, as ilumina um reflexo, ou a terra, rodando, se coloca a jeito do sol.

Vejo tudo
com as lentes.

Se as afasto, instala-se uma névoa invernil, o desconforto de saber que o que está diante de mim foge para longe da nitidez. Como ficam os relatos dos sonhos, quando não se contam a ninguém.

Ana Isabel Soares,
10/03/2017-23/03/2017,
Telhados de Vidro, 22, Novembro de 2017, pp. 11-12.)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Oh...

A primeira ideia que ocorreu ao Reboliço, quando soube do extemporâneo passamento de Pedro Rolo Duarte, foi falar com a mãe: porque para ela e para o Reboliço, além de tudo o que o PRD fizera (e foi muito) nos jornais e em revistas, era a voz dele que lhes soava, quase sempre aos sábados - a mãe em viagem quase sempre, o Reboliço em sossego -, contraponto em riso da outra voz do Hotel Babilónia, a do João Gobern. O Reboliço gosta muito do rádio da Antena1 e, bicho de habituações, rala-se quando lhe calam as vozes. Não é a mesma coisa ouvir as gravações, tantas, tão bem feitas, e escutar assim em deixa lá ver o que vai dizer hoje. O Reboliço agradece muito.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Anúncio

Saiu hoje o nº 11 da Forma de Vida. Muito, muito provinciana.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Merci, sempre, Monsieur Daudet


(O Reboliço está muito grato, também, ao Michel e à Margarida,
amigos grandes que lhe mostraram a preciosidade desta imagem na capa de uma das 
muitas, felizmente muitas edições de Les Lettres de Mon Moulin.)

domingo, 29 de outubro de 2017

O Reboliço colecciona calendários (36)

... e, coincidência tão boa, o mês de Outubro tem um moinho lá ao fundo.


(Desenho de Theo van Hoytema.)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O Moinho Grande numa aguarela

(Aguarela do Moinho Grande: Leonel Borrela, falecido em Maio deste ano.
Outra já o Reboliço mostrara aqui.)

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Chove

O Reboliço encosta o focinho ao vidro da janela, morno ainda da noite. À volta, embacia-se um bocadinho do mundo, enquanto o bicho vê e escuta a chuva, que cai miúda nas pedras da rua do moinho. Toda a noite, mansa, foi caindo, por fim. Agora, os telhados arranjados de novo, os beirados muito direitos, inteiros e caiadinhos, venha o tempo fresco, a água, as nuvens mais escuras. Foi um Verão longo, estendido: o Reboliço não fecha os olhos, a seguir o trânsito de cada gota no vidro, nem recolhe as orelhas, desabituadas já daquele canto mole que a terra acolhe.

domingo, 15 de outubro de 2017

Moinhos na Poesia (86 e 87, dois poemas de Miguel Martins)

"Aldeia"

Adoro as levadas caudalosas,
serpenteando por entre avencas,
levando consigo pequenos blocos de terra,
ensopando a terra,
matando a sede a raízes
que mais parecem teias de aranha
cujo centro se esconde a vários palmos de distância
ou longilíneas tarântulas
Adoro os Verões iniciáticos,
a aprendizagem de caminhos e trabalhos sob as copas densas,
os banhos na represa por entre libélulas e alfaiates
e o esgar de nojo,
quando, da ponte,
se avista lá ao fundo um gato morto
preso nas silvas das margens de água límpida
Adoro os Invernos laboriosos,
as encostas escorregadias,
a lama nas botas,
a misteriosa caminhada até cada courela,
o gesto medieval que ceifa o talo à couve,
o toucinho na salgadeira
Adoro o regresso do ruído,
a chegada das crianças da cidade,
adoro vê-las subir às amoreiras,
as mãos miúdas confiando em nós de madeira centenária, enquanto os pais me visitam na adega,
cortamos uma broa e abrimos uma garrafa de morangueiro fresco
Adoro as casulas e os paramentos na sacristia
e o pó que os cobre nos meses de ausência do padre
e o branco nu da capela
e a pedra nua de todas as outras casas,
que é da cor das folhas de tabaco secas da plantação que o Eduardo tem ao fundo do povo e esconde dos fiscais
(ele que já viu mais mundo que todos os fiscais da região e trabalhou na PanAm e foi aos Estados Unidos)
Adoro as trutas apanhadas à mão e o viveiro de trutas, nossa única indústria desde que ruiu o moinho de água
e só Deus sabe quanto isso me custou e custa,
saber que não mais sentirei o cheiro do milho acabado de moer
Adoro as idas à mercearia da aldeia vizinha
e a pouquíssima variedade de produtos que aí se encontra,
como se estivéssemos em tempo de guerra
ou o século XX não ousasse começar por aqui
Adoro os fogões a lenha,
as enormes arcas de nogueira,
os colchões de palha de milho
confortavelmente concavados por décadas de hóspedes e a remota possibilidade de serem do tempo
em que João Brandão, “o terror das Beiras”, se acoitou nestas casas
Adoro os audazes mergulhos da ponte metálica coberta de caganitas de cabra
e as cabras
e a mão desusada que as conduz
e que sabe amar quando é chegada a noite
ou quando é chamada a iluminar um recanto de sombra
Adoro as lamparinas e os morcegos que vêm chupar o azeite das torcidas,
o cheiro das queimadas e o cheiro do tojo
acabado de roçar,
e as pequenas manchas roxas
que as amoras esmagadas imprimem no chão
Adoro as ameaças e as benesses do céu
e a certeza de que nelas se escondem todas as respostas da irrevogável vontade de Deus
e adoro como uns são pais dos filhos dos outros
e deixam Deus fora da questão
e não pegam em espingardas
Sim, adoro esta aldeia sem caçadores
em que os pardais só temem os espantalhos
e os gritos que ecoam desde o outro lado das montanhas
Adoro o tio Alfredo, que espantava as almas penadas, batendo com uma corda nas costas,
e o primo Alfredo
que trabalha tanto como quem trabalha mais
e mimetiza o mesmo gesto
para afugentar as dores que isso lhe dá por todo o corpo
Adoro a iniciação sexual dos rapazes,
quase sempre com outros rapazes,
anos antes de terem uma rapariga,
o que só acontece aos doze anos e depois não quer dizer nada,
que é como quem diz, fica vida fora
Adoro o orvalho desenhando folhas de plantas nos vidros das janelas
e janelas nas folhas das plantas
e a nitidez de todos os veios destas
e de todas as veias na pele das mulheres,
que nunca tomaram banhos de sol
e sempre cobrem as cabeças com lenços
ou chapéus de palha
E adoro-vos a vós
que nunca vistes nem vereis a minha aldeia
e acabais de a adoptar pelo útero

(Atol, Clube dos Poetas Vivos, Lisboa, 2002)


*
para o Changuito, com amor

Enquanto os pássaros pousam no parapeito da ponte
e aí encontram abrigo para a noite,
que se adivinha tão clara como a cidade finge ser,
Mário caminha num passo que quase parece estugado,
mas, na verdade, apenas sabe que se quer afastar
do ponto em que, vezes sem conta, uma explosão eclodiu,
embora seja evidente que esse ponto caminha consigo,
algures entre o estômago e a caixa torácica,
conquanto o sinta a tremeluzir na garganta,
como se uma tontura, feita nevoeiro, baixasse agora
sobre esse rio que, correndo nos dois sentidos,
quase sempre vem desaguar na sua boca.


Alcântara, Belém, Algés, e por diante 
sabe que, por ali, alcançaria a infância,
não fôra o intransponível muro que, de pedra e cuspo,
lhe atiraram aos olhos numa tarde sem data,
de maneira que o ronronar da mota ou o bater do coração
ficaram atulhados, sob um monte de lixo,
e nunca mais estiveram ao alcance da mão,
se bem que lhes sinta a falta quando calha
cruzar-se com um anjo na Calçada do Combro
e, na verdade, raro lhe aconteça pensar
em Steinbeck, Rockefeller ou na Guerra dos Seis Dias.

E esta distância, assim, tão longe e perto,
são dedos entre as mós de um moinho sem vento,
obrigando a escolher entre partir sem eles
ou aguardar sentado sobre a sua idade
até que a sua idade não interesse a ninguém
nem já saiba merecer o cetim de um sorriso.

Mas, ao menos, agora que os pássaros levantam do parapeito da ponte,
Mário — um pouco cerveja, um pouco loucura 
e muito coração — adormece no dorso de um cavalo de pedra
ouvindo o ronronar daquela moto
em que, ainda criança, rumava à claridade.

(O Caçador Esquimó, Lisboa, Fahrenheit 451, 2017, 21-22.) 

domingo, 24 de setembro de 2017

"Soneto Dezoito"

Comparar-te ao verão? Nessa não caio:
És mais amante, e muito mais constante.
O vento balança os botões em Maio,
E o calor se evapora num instante.
O olho do céu que brilha lá em cima
Às vezes perde a sua cor dourada,
E tudo o que é firme um dia declina;
A natureza às vezes muda a estrada.
Mas o teu verão eterno, que dure
E que nunca outono vinque o teu rosto.
À Morte só direi que não se apure,
Que o que neste verso está disposto
Há de durar como o que vê, e respira,
Pois por ti vive o que à vida se atira.
[William]Shakespeare/Adalberto[Müller]
Da página de FB de AM, em 23/09/2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Domingo, o Reboliço continua na serra.


Setembro

"Entra, Setembro," pensa o Reboliço. "Entra agora, que me vou pela serra. Apanho a NacionalDois, já vejo as casas com paredes de cal e pedra do Ameixial, as marafadas das curvas, os regatos que vão secando, o tráfego escasso, déu-em-déu até Almodôvar, e dali, de salto no Complementar Itinerário, até Pax Julia. Ali está a casa do Moinho destelhada, os figos a amadurecer ao sol, o moinho suspirando e a terra a ressequir. Entra, Setembro. Deixa vir manso o Outono, mas que traga uma pouca de água, alguma coisa que sacie esta sede."

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Línguística aplicada

algumas palavras
fugiram do cativeiro da
gramática e da sintaxe
caíram as letras dos jornais
uma língua nova falou-se na cidade
com letras roubadas dos placards luminosos
com erros
erros sintáticos
erros gramaticais
erros fonéticos
(romanço)
erros de todo o género
(as pessoas começaram a dizer mal as palavras, não se apercebendo que as coisas eram as mesmas,
com excepção do frigorífico, não se retirando aqui importância ao mesmo)
as
línguas
também
outrora
unas
(mare nostrum)
se podem estilhaçar em mil pedaços
lentamente
e depois voltarem a juntar-se
(na realidade as pessoas sempre deram erros, o "ne varietur" vale tanto como o modelo de Bohr)
Manuel Botelho da Silva, 'língua', poema inédito 
(suplemento "Economia" do semanário Expresso, 19/08/2017, p. 05)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

"Amar"


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma (1951).

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

"glebas floridas"

Ainda não integra o Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental (que, pensa o Reboliço, deveria deixar cair já já o "Continental" para aceitar, almenos, os lugares de Nemésio), mas lá irá parar, seguramente. Enquanto não, zune - zune nas orelhas do Reboliço como o zumbido reconfortante do histórico, sempiterno estio.

     Neste sertão tão pouco espectacular e desolado da serra da Nave, uns homens raros e temerários vieram um dia com os seus tractores, os seus catterpillers Diesel, as suas charruas e grades de discos. E, muito provavelmente a primeira vez depois que o Mundo é Mundo, lavraram o solo adusto, o solo baço, não caldeado do suor do homem, numa longa área, onde apenas de Inverno se ouviam os lobos uivar de altinho para altinho a combinar a sua táctica de bandoleiros, e nas noites de luar as lebres dançavam nas panasqueiras.
     As aldeias serranas Alvite, Carapito, Aris, Semitela deitaram às gargalhadas. Por pouco não se ouviam os ecos dos valeiros repercutir o riso sardónico, o riso alvar das mandíbulas desdenhosas. Ali batatas!? Esse manjar que vai à mesa dos reis, tão adstringente e nutritivo, tão democrático mas delicado, poderia produzir-se no meio das fragas onde só medra a sarça e o tojo alvarinho?!
     E, ó milagre, os tubérculos maravilhosos germinaram, deitaram para fora do solo inóspito suas orelhinhas de gato, que só o não parecem de todo pelo belo tom esmeraldino, retoiçaram, altearam-se e, em regos simétricos nas longas vessadas, deram a impressão das vagas de um mar roleiro soprado pelo velho amigo Bóreas. Aos cépticos inteligentes foi dado o prazer inefável de contemplar uma destas glebas floridas. A polvilhação branca por cima do verde compacto tinha o seu quê de bucólica muito original e intraduzível, miríades de borboletas pairando por cima dum lago, ou uma neve irisada e fátua a derreter ao Sol.
Aquilino Ribeiro (1954), Introdução a O Homem da Nave, Bertrand Editores, 2017, p. 15.